sábado, 29 de fevereiro de 2020

Corpus Hermeticum XV & XVI

CORPUS HERMETICUM
De Hermes Trismegisto


XV ...

Este tratado foi perdido. Existem alguns fragmentos dispersos em citações, mas cujo sentido é tão pouco interessante que não vale o trabalho de coletá-los.

XVI - AS DEFINIÇOES; ASCLÉPIOS AO REI AMMON

Acerca de Deus, da matéria, sobre o mal, a fatalidade, o sol, a substância inteligivel, sobre a essência divina, sobre o ser humano, a disposição do pleroma, os sete astros e sobre o ser humano segundo a imagem.
1 Eu te envio, ó rei, um importante discurso que é como o coroamento e o complemento de todos os outros, não foi concebido conforme as idéias da massa, contrariamente as refuta em mais de um ponto. Perceberás nele mesmo algumas discordâncias relativas aos meus próprios discursos. Hermes então, meu mestre, nos freqüentes diálogos que tinha como que em sua casa, privadamente; quer em presença de seu filho Tat, tinha o costume de me dizer que aqueles que lerão meus livros acharão a composição simples e clara, enquanto que, obscuro e oculto o significado das palavras e que será ainda mais obscuro quando os Gregos, mais tarde, traduzirem-nos de nossa língua para a sua, o que conduzirá a uma completa distorção do texto e  a uma total obscuridade.
2 - Por outro lado, expresso em nossa língua original, esse discurso conserva com toda clareza o sentido das palavras: e na verdade a particularidade mesmo do som e da entonação dos vocábulos egípcios retém neles mesmos a energia das coisas que se dizem.
Enquanto esteja sob teu poder, ó rei - e tudo podes - preserva bem este discurso de toda tradução a fim de que tão grandes mistérios não cheguem aos Gregos e que a orgulhosa elocução dos mesmos, com a sua falta de sensibilidade e com o que se poderia dizer falsas graças, faça

empalidecer e desaparecer a gravidade, a solidez, a virtude eficaz dos vocábulos de nossa língua. Pois os Gregos, ó rei, possuem apenas discursos vazios, bons para o efeito de demonstrações: e é isto que é toda a filosofia dos Gregos, um rumor de palavras. Quanto a nós, não nos servimos de simples palavras, mas de sons repletos de eficácias.
3 Começarei dest'arte meu discurso, por uma invocação à Deus, o mestre, criador, pai e envoltório do universo inteiro, aquele que sendo o Um é tudo e que sendo tudo é Um. Pois o pleroma de todos os seres é um e está no Um, não que o Um se desdobre, mas os dois conjuntamente perfazem apenas a unidade. Guarda este modo de pensar, ó rei, durante todo o decurso de minha exposição. Pois se alguém tenta separar do Um, tomando a palavra, tudo, no sentido de uma pluraridade e não de uma totalidade, o que parece ser tudo e um e mesmo, acaba, coisa impossível, por ter separado o Todo do Um, por destruir o Todo. É necessário, verdadeiramente que tudo seja um, se pelo menos existe um Um - ora existe e jamais deixa de ser um - para que o pleroma não seja dissolvido.
4 Eis então, que na terra, nas suas partes mais centrais, jorram muitas fontes d'água e de fogo e que desta forma podemos ver juntas no mesmo lugar as três naturezas do fogo, da água e da terra, dependentes de uma mesma raiz. O que leva a acreditar que existe um mesmo depósito que, de um lado, provê ao fornecimento de matéria e por outro recebe de volta a substância que vem do alto. 5 É desta forma que o demiurgo, quero dizer, o Sol, conjunta o céu e a terra, enviando para baixo a substância e elevando a matéria, levando para perto de si e para si as coisas e fazendo sair de si e dando tudo a todos e espargindo sobre todos, liberalmente, a luz: pois ele é aquele cujas boas energias penetram não somente no céu e no ar, mas também na terra, até o golfo mais profundo e no abismo.
6 Por outro lado, se existe também alguma substância inteligível, ela é o volume do Sol e a luz do Sol poderia ser dita o receptáculo dessa substância. Agora, do que se compõe ou de onde é proveniente esta substância, apenas o próprio Sol o sabe e para sabê-lo seria necessário ser-lhe próximo ou do lugar ou da natureza.
7 Quanto à visão do Sol, esta não é objeto de conjectura, mas o raio solar envolve com seu próprio brilho mais rutilante o mundo inteiro e a parte que está embaixo é a parte que está em cima: pois o Sol está estabelecido no meio do mundo, portando o mundo como uma coroa e como um bom conduto assegurou o equilíbrio do carro do mundo, subiu, e ele com medo que este fosse colocado em um curso desordenado. As renas são a vida, a alma, o sopro, a imortalidade e a geração. Deixou de tanto sofrear as renas para que o mundo pudesse conduzir seu curso não longe dele, mas para dizer a verdade, com ele, 8 e é desta maneira que as coisas são continuamente criadas, dando aos seres imortais a duração eterna e alimentando com a parte de sua luz que se dirige para o alto, isto é, com os raios projetados pela sua face voltada para o céu, as partes imortais do mundo, enquanto que, com a luz que está aprisionada no mundo e que banha com seu brilho, inteiramente, a concavidade da água, da terra e do ar, vivifica e põe em movimento, pelos nascimentos e metamorfoses, os seres viventes que subsistem nestas partes do mundo, remodelando-os e transformando-os uns nos outros como numa espiral - a mudança de uns nos outros operando uma troca contínua de gênero a gênero e de espécie - logo, exercendo sobre esta parte do mundo a mesma atividade criadora que sobre os grandes corpos. Pois de todo corpo a duração é mudança: do corpo imortal uma mudança sem dissolução, do corpo mortal uma mudança acompanhada de dissolução. E esta é precisamente a diferença do imortal relativamente ao mortal e do mortal com o imortal.
10 Da mesma forma que o Sol expande sem cessar sua luz, também continua indefinidamente a criar a vida sem jamais interromper o seu trabalho, nem quanto ao lugar, nem quanto à produção. E efetivamente, o Sol tem ao seu redor numerosos coros de daimons, semelhantes a grupos armados de forma diversa, que convivem com os mortais sem perder a imortalidade e que após terem recebido como sua parte a região dos homens, velam sobre seus negócios. E executam o que lhes é ordenado pelos deuses, por meio de tempestades, de ciclones, de maremotos, de vicissitudes no elemento ígneo, terremotos e fome e guerra, castigando a impiedade. 11 Este é realmente o maior pecado dos homens contra os deuses: pois aos deuses

pertence fazer o bem, aos humanos serem pios, e aos daimons ajudar aos deuses. Todos os outros pecados que os humanos ousam cometer por estupidez, temeridade ou pela coerção que se chama Destino, ou ainda por ignorância, todos esses pecados não são levados em conta pelos deuses: somente a impiedade cai sob os golpes do julgamento.
12 O Sol é, portanto, o conservador e a nutriz de toda espécie de seres e da mesma forma que o mundo inteligível envolvendo o mundo sensível, preenche este de todas as formas com a infinita diversidade de suas figuras, o Sol envolvendo tudo o que está no mundo, dá seu volume a todos os seres que nascem e os fortifica, ainda que os absorva em si mesmo quando estes morrem.
13 Ora, sob as ordens do Sol, foi posto o coro de daimons, ou melhor, os coros: pois são numerosos e diversos, colocados sob os comandos dos quadrados dos astros. Dispostos desta forma servem próximos a cada um dos astros, bons ou maus quanto à sua natureza, isto é, quanto às suas atividades - pois a essência de um daimon é a atividade - existem alguns entre eles que são uma mistura de bem e de mal.
14 Todos esses demônios receberam pleno poder sobre os sucederes da terra e sobre as desordens que aí se produzem e provocam toda espécie de problemas, em geral para as cidades e povos e particularmente para cada indivíduo. Pois buscam remodelar nossas almas segundo seu interesse a excitá-las, instalado em nossos músculos e medula, em nossas veias e artérias, em nosso cérebro e penetrando até nas nossas entranhas.
15 Pois, tendo cada um de nós nascido e sido animado, foi tomado a cargo dos daimons que estavam de serviço sob as ordens de cada um dos astros. Pois os daimons se substituem de instante em instante: os mesmos não permanecem em função mas em rodízio. Esses daimons após terem penetrado no corpo nas duas partes da alma, atormentam-na, cada um no sentido de sua própria atividade. Somente a parte racional da alma escapando à soberania dos daimons, permanece estável, pronta a tornar-se receptáculo de Deus.
16 Se então, na parte racional de sua alma, um ser humano recebe a luz do raio divino através do Sol (esses humanos são poucos entre todos) os daimons ficam reduzidos à impotência, pois nenhum dos demônios, nem dos deuses possui poder contra um único raio de Deus. Quanto aos outros humanos são levados a torto e a direito, corpos e almas, pelos daimons e amam, acariciam essas atividades dos daimons neles. É a razão, não o amor que é ao mesmo tempo a vítima e a causa do dissabor. Desta forma o governo de nossa vida terrestre está inteiramente no poder dos daimons, pelo intermédio de nosso corpo: é a este governo que Hermes chamou Destino.
17 Bem, o mundo inteligível depende de Deus, o mundo sensível do inteligível e o Sol através do mundo inteligível e do mundo sensível recebe de Deus, por sua providência, o influxo do Bem, isto é, a ação criadora. Por outro lado, em torno do Sol gravitam as oito esferas, dependendo do Sol, e dos astros fixos, as seis esferas dos planetas e a esfera única que envolve a terra. É dessas esferas que dependem os daimons, e dos daimons, os homens: e desta maneira tudo e todos estão na dependência de Deus.
18 É por isto que Deus é o Pai, das coisas, o Sol é o criador e o mundo o instrumento desta ação criadora. O céu é governado pela substância inteligível, governa por sua vez os deuses e os daimons colocados sob as ordens dos deuses, governam os humanos: é desta maneira que está disposta e armada dos deuses e dos daimons. 19 Deus criou as coisas por si só, por seu intermédio e as coisas são partes de Deus: ora se são partes de Deus, Deus é seguramente tudo. Criando então as coisas Deus criou a si mesmo e é impossível que cesse de criar pois não pode deixar de ser.
E do mesmo modo que Deus não tem fim, também sua atividade criadora não tem começo nem fim.

Continua...

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

A Voz do Silêncio - Terceiro Fragmento

A Voz do Silêncio
Helena Blavatsky


Terceiro Fragmento – As Setes Portas

UPADHYA 96, a escola está feita. Anseio pela sabedoria. Rasgaste já o véu que escondia o caminho secreto e ensinaste o Yana 97 superior. O teu servo aqui está, pronto para que o guies.

Está bem, Shravaka 98. Prepara-te, porque terás de seguir sozinho, O mestre só pode apontar a direção. O caminho é um para to dos, o meio de chegar à meta deve variar de peregrino para peregrino.

Qual é que vais escolher, ó de coração indômito? O Samtan 99 da doutrina dos olhos, o quádruplo Dhyana, ou abrirás caminho através das Paramitas 100, seis em número, nobres portas da virtude conduzindo a Bodhi e a Prajna, sétimo passo da sabedoria?

O caminho árduo do quádruplo Dhyana ondula montanha acima. Três vezes grande é aquele que chega ao píncaro altíssimo.

As alturas de Paramita são atravessadas por um caminho ainda mais íngreme. Tens de forçar o teu caminho através de sete portas, sete fortalezas guardadas por poderes cruéis e ardilosos - paixões encarnadas.

Anima-te, discípulo; tem sempre presente o preceito áureo. Uma vez passada a porta Srotapatti 101 “aquele que entrou para o rio” cujo pé foi posto sobre o leito do rio nirvânico nesta vida ou em qualquer vida futura, tem apenas diante dele mais sete nascimentos, ó homem de vontade de ferro.

Repara. Que vês tu diante dos teus olhos, ó aspirante à sabedoria divina?

“O manto da escuridão cobre a profundeza da matéria; nas suas dobras me debato. Aprofundase, Senhor, à medida que para ele olho; um gesto da tua mão o desfaz. Mexe-se uma sombra, arrastando-se como as dobras coleantes da serpente... Cresce, alastra-se, e desaparece na escuridão”.

É a sombra de ti próprio fora do Caminho, caindo sobre a escuridão dos teus pecados.

“Sim, Senhor, vejo o Caminho; o seu princípio fincado no lodo, o seu cimo perdido na nirvânica luz gloriosa: e agora vejo os portais cada vez mais estreitos na estrada árdua e espinhosa para Jnana" 102.

Vês bem, Lanu. Esses portais levam o aspirante a atravessar o rio para a outra margem 103. Cada portal tem uma chave de ouro que abre a sua porta; e essas chaves são:

1. Dana, a chave da caridade e do amor imortal.
2. Shila, a chave da harmonia nas palavras e nos atos, a chave que contrabalança a causa e o efeito, não deixando mais espaço à ação cármica.
3. Kshanti, a paciência suave, que nada pode alterar.
4. Vairagya, a indiferença ao prazer e à dor, a ilusão vencida, só a verdade vista.
5. Virya, a energia indômita que abre o seu caminho para a verdade suprema, erguendo-se acima das mentiras terrenas.
6. Dhyana, cuja porta de ouro, uma vez aberta, leva o Naljor 104 para o reino de Sat, o eterno, e para a sua contemplação sem fim.
7. Prajna, cuja chave faz de um homem um Deus, criando-o um Bodhisattva, filho dos Dhyanis.

Tais são as chaves de ouro para esses portais.

Antes que te possas acercar do último, ó tecedor da tua liberdade, tens de possuir estas Paramitas da perfeição - as virtudes transcendentais em número de seis e dez - por esse longo caminho.

Porque, ó discípulo, antes que estivesses apto a encontrar o teu Mestre frente a frente, o teu Senhor luz a luz, que foi que te disseram?

Antes que te possas acercar da porta mais próxima tens de aprender a separar o teu corpo do teu espírito, e a viver no eterno. Para isto, tens de viver e respirar em tudo, como tudo que vês respira em ti; sentir-te existir em todas coisas, e todas as coisas em ti.

Não deixarás os teus sentidos fazer do teu espírito campo para o seu recreio.

Não separarás o teu ser do Ser, e do resto, mas fundirás o oceano na gota de água, e a gota de água no oceano.

Assim estarás em acordo com tudo quanto vive; ama os homens como se eles fossem os teus condiscípulos, discípulos do mesmo Mestre, filhos da mesma boa mãe.

Professores há muitos; a Alma-Mestra 105 é uma, Alaya, a Alma Universal. Vive nesse Mestre como o seu raio em ti. Vive nos teus semelhantes como eles nela.

Antes que estejas no limiar do Caminho; antes que entres pela primeira porta, tens de fundir os dois em um e sacrificar o pessoal à Personalidade impessoal, e assim destruir o caminho entre as duas - Antahkarana 106.

Tens de estar pronto para responder a Dharma, a lei austera, cuja voz te perguntará ao teu primeiro passo, ao teu passo inicial.

“Obedeceste a todas as regras, ó de altas esperanças?

“Puseste o teu coração e a tua mente de acordo com a grande mente e o grande coração de toda a humanidade? Porque, como a voz sonora do grande rio, na qual todos os sons têm o seu eco 107, assim deve o coração daquele que queira entrar para o rio vibrar em resposta a cada suspiro e a cada pensamento de tudo quanto vive e respira”.

Os discípulos podem ser comparados a cordas da vina que produz eco nas almas; a humanidade, à sua caixa de ressonância; a mão que a vibra, à respiração melodiosa da Grande Alma do Mundo. A corda que não vibra ao toque o Mestre, em harmonia suave com todas as outras, quebrase e é deitada fora.

Assim as mentes coletivas dos Lanu-Shravakas. Têm de ser afinadas para vibrar de acordo com o espírito do Upadhya - uno com a Super-Alma - ou se quebrará. Assim fazem os irmãos da sombra - os assassinos das suas Almas, a horrível seita dos DadDugpa 108.

Puseste o teu ser de acordo com a grande dor da humanidade, ó candidato à luz?

Fizeste assim?... Podes entrar. Antes, porém, que dês um passo no duro caminho da tristeza, é bom que aprendas quais são os perigos da estrada.

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Armado com a chave da caridade, do amor e da terna misericórdia, podes estar tranqüilo ante a porta de Dana, a porta que fica à entrada do Caminho.

Vê, ó ditoso peregrino! O portal que tens diante de ti é alto e largo, parece de fácil acesso. A estrada que o atravessa é reta, suave e relvada. É como uma clareira cheia de sol no meio da floresta escura e funda, um lugar na terra refletindo o paraíso de Amitabha 109. Ali rouxinóis de esperança e aves de penas radiosas cantam em bosques verdejantes, trilando triunfos aos peregrinos sem receio. Cantam as cinco virtudes do Bodhisattva, a fonte quíntupla do poder do Bodhi, e dos sete degraus no conhecimento.

Passa, segue para diante!. Trouxeste a chave: estás salvo.

Para a segunda porta a entrada é verde também, mas é íngreme e serpenteia montanha acima - sim, até ao cimo rochoso da montanha. Névoas cinzentas cobrirão o seu píncaro rude e pedregoso, e para além será tudo escuridão. À medida que avança, o cântico da esperança soa cada vez mais débil no coração do peregrino. O arrepio da dúvida atinge-o; os seus passos tornam-se mais incertos.

Acautela-te com isto, ó candidato; acautela-te contra o medo que, como as asas negras e silenciosas do morcego noturno, se alastra entre o luar da tua Alma e a tua grande meta que surge na distância, muito longe ainda.

O medo, ó discípulo, mata a vontade e de mora a ação. Se é falho da virtude Shila, o peregrino tropeça, e pedras cármicas ferem-lhe os pés pelo caminho pedregoso.

Pisa com segurança, ó candidato. Banha a tua alma na essência de Kshanti; porque te acercas agora do portal que tem esse nome, a porta da fortaleza e da paciência.

Não feches os olhos, nem percas de vista Dorje 110; as setas de Mara atingem sempre o homem que não chegou ao Vairagya 111.

Não tremas. Sob o hálito do medo enferruja a chave de Kshanti; a chave ferrugenta já não pode abrir.

Quanto mais avançares, mais e mais serão os perigos que cercarão os teus passos. O caminho que segue para diante é iluminado por uma chama - a luz da audácia ardendo no coração. Quanto mais ousares, mais conseguirás. Quanto mais temeres, mais a luz esmorecerá - e só ela te pode guiar. Porque como o último raio do sol no píncaro do alto monte é seguido pela noite escura quando cessa, assim é a luz do coração. Quando se apaga, uma sombra negra e ameaçadora cairá do teu co ração sobre o Caminho, e prenderá os teus pés pávidos no chão.

Acautela-te, discípulo, com essa sombra letal. Nenhuma luz que brilhe do Espírito pode dispersar a escuridão da Alma inferior, a não ser que todo o pensamento egoísta de lá tenha fugido, e que o peregrino diga: “Abdiquei deste corpo que passa; destruí a causa; as sombras, meros efeitos, não podem mais subsistir”. Por que teve lugar agora a última grande batalha, a guerra final entre o ser superior e o inferior. Vê, o próprio campo da batalha se engolfou na grande guerra, e deixou de existir.

Mas, uma vez passada a porta de Kshanti, está dado o terceiro passo. O teu corpo é teu escravo. Prepara-te agora para a quarta porta, a porta das tentações que enleiam o homem interior.

Antes que possas acercar-te dessa meta, antes que a tua mão se erga para levantar o fecho da quarta porta, deves ter dominado to das as alterações mentais em ti, e matado o exército das sensações-pensamentos que, sutis e insidiosas, se introduzem, sem que tu queiras, no sacrário luzente da Alma.

Se não queres que elas te matem, deves tornar inofensivas as tuas criações, os filhos dos teus pensamentos, invisíveis, impalpáveis, que enxameiam em torno à humanidade, prole e herdeiros do homem e das suas presas terrestres. Tens de estudar o vácuo do aparente mente cheio, o cheio do aparentemente vazio. Ó aspirante intemerato, olha bem para dentro do poço do teu coração, e responde. Conheces bem os poderes da Personalidade, ó observador das sombras externas?

Se os não conheces, está perdido.

Porque, no quarto caminho, a mais leve brisa da paixão ou do desejo fará tremer a luz firme nos muros brancos e puros da Alma. A mais pequena onda de ânsia ou de saudade pelos dons ilusórios de Maya, ao passares por Antahkarana - o caminho que há entre o teu Espírito e a tua Personalidade, a estrada-real das sensações, as despertadoras de Ahamkara 112 - um pensamento rápido como a luz do relâmpago far-te-á perder os teus três prêmios - os três prêmios que ganhaste. Aprende que no Eterno não há mudança.

“Abandona para sempre as oito cruéis angústias; se não, por certo que não chegaste à sabedoria, nem ainda à libertação”, diz o grande Senhor, o Tathagata da perfeição, “aquele que seguiu as passadas dos seus predecessores 113.

Austera e exigente é a virtude de Vairagya. Se queres possuir o seu caminho, tens de ter a tua mente, as tuas percepções mais do que nunca livres da ação mortal.

Tens de te saturar do puro Alaya, de te identificar com o pensamento da alma da Natureza. Unificado com ele és invencível; separado dele, torna-te o campo de recreio de Samvritti 114, origem de todas as ilusões do mundo.

Tudo é transitório no homem, salvo a pura e clara essência do Alaya. O homem é o seu raio cristalino; por dentro um raio de luz imaculada, uma forma de barro material na superfície inferior. Esse raio é o teu guia de vida e a tua Personalidade verdadeira, a sentinela e o pensador silencioso, a vítima do teu ser inferior. A tua Alma não pode ser ferida senão através do teu corpo pecador; domina e rege os dois e estarás salvo quando estiveres cruzando as proximidades da Porta do Equilíbrio.

Anima-te, audaz peregrino, para a outra margem. Não dês ouvidos ao segredar das hostes de Mara; afasta os tentadores, esses espíritos de má índole, os Lhamayn115 no espaço infinito.

Mantém-te firme! Acerca-te agora do por tal médio, da porta da dor, com as suas dez mil armadilhas.

Domina os teus pensamentos, ó ansioso pela perfeição, se queres atravessar o limiar dela.

Domina a tua alma, ó ansioso pelas verdades eternas, se queres chegar à meta.

Concentra o olhar da tua alma na luz única e pura, na luz que nada afeta, e serve-te da tua chave de ouro.

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O árduo trabalho está feito, a tua tarefa quase finda. O grande abismo, que se abria para te tragar, está quase passado.

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Atravessaste a vala que circula a porta das paixões humanas. Venceste já a Mara e à sua horda furiosa.

Tiraste a impureza do teu coração e sangraste-o de desejos impuros. Mas, ó combatente glorioso, a tua tarefa ainda não está no fim. Constrói alto, Lanu, o muro que há de defender a tua Ilha Sagrada 116, o dique que protegerá o teu espírito do orgulho e do contenta mento ao pensares no teu grande feito.

Um sentimento de orgulho macularia a tua obra. Sim: ergue forte o muro, não vá o impulso feroz das ondas em guerra, que sobem e batem na sua costa, vindas do grande Mundo do oceano de Maya, engolfar o peregrino e a ilha; - sim, no próprio momento da vitória.

A tua “ilha” é a corça, os teus pensamentos os galgos que cansam e perseguem o seu avanço até ao rio da vida. Ai da corça que é atingida pelos galgos malignos antes que chegue ao vale do refúgio - Jnana-Marga 117, “o caminho do puro conhecimento”.

Antes que te possas estabelecer em Jnana Marga e chamar-lhe teu, a tua Alma tem de se tornar como o fruto maduro da mangueira: mole e doce como a sua polpa dourada para as angústias dos outros, duro como o caroço desse fruto para as tuas próprias dores e angústias, ó triunfador da alegria e da tristeza.

Torna a tua Alma dura contra as armadilhas da tua personalidade; faze com que ela mereça o nome de Alma de Diamante.

Porque, como o diamante enterrado fundo no coração vivo da terra não pode refletir as luzes terrenas, assim são a tua mente e a tua Alma; imersos no Jnana-Marga, nada devem refletir do meio ilusório de Maya.

Quando chegares a esse estado, os portais que tens de vencer no teu caminho abrem de par em par as suas portas, para que passes e os poderes maiores da natureza não têm força para te embargar o passo. Serás dono do sétuplo caminho: mas só então o serás, ó candidato a provas indizíveis.

Até ali, espera-te uma tarefa muito mais difícil: tens de te sentir todo pensamento, e contudo exilar da tua alma todos os pensamentos.

Tens de chegar àquela fixidez de espírito em que nenhuma brisa, por mais que cresça, pode soprar um pensamento material para dentro dele. Assim purificado, o sacrário deve ficar vazio de toda a ação, som ou luz da terra; assim como a borboleta, atingida pela geada, cai morta no limiar - assim todos os pensamentos materiais devem cair mortos ante o tempo.

Vê que está escrito:

“Antes que a chama dourada possa arder com um brilho firme, deve a lâmpada estar guardada num lugar livre de toda a aragem”. Exposta à brisa volúvel, a chama tremerá, e, tremendo, lançará sombras enganosas, negras, e sempre variantes, sobre o sacrário branco da Alma.

E então, ó perseguidor da verdade, a alma da tua mente tornar-se-á como um elefante louco, que se enfurece na floresta. Tomando as árvores por inimigos vivos, morre ao tentar matar as sombras sempre incertas bailando no muro dos rochedos inundados de sol.

Acautela-te, não vá a tua alma, ao cuidar da tua Personalidade, perder pé no terreno do conhecimento Deva.

Acautela-te, não vá a tua Alma, ao esquecer a Personalidade, perder o seu domínio sobre o seu espírito trêmulo, perdendo assim o justo prêmio das suas conquistas.

Acautela-te contra a mudança, porque a mudança é o teu grande inimigo. A mudança lutará contigo, afastar-te-á, atirar-te-á para fora do caminho que trilhas, para dentro de pântanos viscosos de dúvida.

Prepara-te e acautela-te a tempo. Se experimentaste e falhaste, ó lutador indômito, não percas, porém, a coragem: continua a lutar, e volta ao embate repetidamente.

O guerreiro destemido, ainda que o sangue da sua vida lhe escorra das feridas abertas, continuará a atacar o inimigo, expulsá lo-á do seu forte, vencê-lo-á mesmo, antes que ele próprio expire. Agi, pois, todos vós que falhais e que sofreis, como esse soldado; e do forte da vossa Alma expulsai todos os vossos inimigos - a ambição, a cólera, o ódio, até a sombra do desejo - mesmo quando tiverdes falhado...

Lembra-te, tu que lutas pela libertação humana 118, que cada falência é um triunfo, e cada tentativa sincera a seu tempo recebe o seu prêmio. Os santos germes que brotam e crescem invisíveis na Alma do discípulo, dobram como juncos mas não quebram, nem podem eles perder-se. Mas quando a hora soa, desabrocham 119.

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Mas se vieste preparado, então não temas nada.

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Daqui em diante é claro o teu caminho, que vai direto à porta de Virya, o quinto dos sete portais. Estás agora no caminho que conduz ao porto do Dhyana, o sexto portal, o portal Bodhi.

A porta do Dhyana é como um vaso de alabastro, branco e transparente; dentro dele arde uma luz firme e dourada, a chama de Prajna, que de Atman irradia.

Esse vaso és tu.

Afasta-te dos objetos dos sentidos, seguiste pelo caminho da visão, pelo caminho da audição, e estás agora na luz do conhecimento. Chegaste agora ao estado de Titiksha 120.

Ó Naljor, estás salvo.

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Aprende, vencedor dos pecados, que uma vez que um Sowani 121 tenha atravessado o sé timo caminho, toda a natureza estremece de alegria e se sente submissa. A estrela prateada eis que cintila esta nova às flores da noite, o riacho murmura esse conto às pedras; as ondas escuras do oceano o cantam aos rochedos cheios de espuma, as brisas perfumadas cantam-no aos vales, e os pinheiros altivos segredam misteriosamente: “Surgiu um Mestre, um Mestre do Dia" 122.

Ele se ergue agora como uma coluna branca ao ocidente, sobre cuja fronte o sol nascente do pensamento eterno derrama as suas primeiras ondas gloriosas. O seu espírito, como um oceano ilimitado em calmaria, alastra-se no espaço sem praias. Ele tem a vida e a morte na sua mão poderosa.

Sim, ele é poderoso. O poder vivo tornado livre nele, esse poder que é Ele próprio, pode erguer o tabernáculo da ilusão muito acima dos Deuses, a cima dos grandes Brahm e Indra. É agora, por certo, que ele conseguirá o seu grande prêmio!

Não usará ele os dons, que isso confere, para seu descanso e felicidade, para seu proveito e glória tão bem ganhos - ele o subjugador da grande ilusão?

Não, ó candidato à ciência secreta da natureza! Se quiseres seguir os passos do santo Tathagata, esses dons e poderes não são para ti próprio. Irás assim por um dique às águas nascidas em Someru 123? Irás desviar o rio para teu serviço, ou fazê-lo subir até à sua nascente, pelos cerros dos ciclos?

Se quiseres que esse rio de conhecimento bem ganho, de sabedoria de divina origem, fique uma corrente pura, não deves deixar que ele se torne um lago estagnado.

Aprende: se quiseres tornar-te cooperador de Amitabha, a Idade Ilimitada, então deves derramar a luz adquirida, como os dois Bodhisattvas 124, sobre a extensão de todos os três mundos 125.

Aprende que a corrente de conhecimento sobre-humano e a sabedoria Deva, que adquiriste, deve, de ti, o canal de Alaya, ser derramada para outro leito.

Aprende, ó Naljor, tu do caminho secreto, que as suas águas puras devem ser emprega das para tornar mais doces as ondas amargas do oceano - esse grande mar de sofrimento formado pelas lágrimas dos homens.

Ai de ti! Uma vez que te tornaste como a estrela fixa no alto céu, esse claro orbe celeste deve, das profundezas do espaço, brilhar para todos, menos para si mesmo; dar luz a todos, e a nenhum tirála.

Ai de ti! Uma vez tornado como a neve pura nos vales das montanhas, fria e insensível ao tato, quente e protetora para a semente que dorme fundo sob o seu seio - agora é essa neve que deve receber a geada mordente, os vendavais do norte, protegendo assim do seu dente fino e cruel a terra que contém a colheita prometida, a colheita que dará pão aos que têm fome.

Por ti próprio condenado a viver através de Kalpas futuros sem que os homens te vejam ou te agradeçam; apertado como uma pedra contra inúmeras outras que formam o “Muro da Guarda" 126, tal é o teu futuro se passares a sétima porta. Construído pelas mãos de muitos Mestres da Compaixão, erguido pelas suas torturas, cimentado pelo seu sangue, ele proteje a humanidade, desde que o homem é homem, livrando-a de novas e maiores angústias e tristezas.

O homem, porém, não o vê, não o quer ver, nem quer dar ouvidos à palavra da Sabedoria, porque não a conhece.

Mas tu ouviste-a, tu sabes tudo, ó de Al ma ansiosa e imaculada... e tens de escolher. Escuta ainda.

No Caminho de Sowan, ó Srotapatti, segues seguro. Sim, nesse Marga, onde apenas a escuridão vem ao encontro do peregrino cansado, onde, rasgadas por espinhos, as mãos gotejam sangue, os pés são rasgados por pedras agudas e duras, e Mara emprega as suas armas mais fortes para além dele, imediata mente há um grande prêmio.

Calmo e impassível, o peregrino vai até ao rio que conduz ao Nirvana. Ele sabe que quanto mais os seus pés sangrarem, mais lavado e limpo ele próprio ficará. Ele sabe bem que depois de sete breves e transitoriais nascenças, o Nirvana lhe pertencera...

Tal é o caminho de Dhyana, o porto do iogue, a meta sagrada que o Srotapattis buscam.

Não é assim quando atravessou e conquistou o caminho Arhat 127.

Ali Klesha 128 é destruído para sempre, e as raízes de Tanha 129 arrancadas; mas pára, discípulo... escuta uma palavra ainda. Podes tu destruir a divina compaixão? A compaixão não é um atributo. É a Lei das leis - a harmonia eterna, o próprio Ser de A1aya, uma essência universal sem praias, a luz da justiça eterna, o acordo de tudo, a lei do eterno amor.

Quanto mais com ela te unificares, fundindo o teu ser no seu ser, tanto mais a tua Alma se unirá àquilo que é, tanto mais te tornarás a Compaixão Absoluta 130.

Tal é o caminho Arya, caminho dos Budas da perfeição.

Mas o que significam os livros sagrados que te fazem dizer:

“Om! Creio que nem todos os Arhats obtêm o doce gozo do caminho nirvânico.

“Om! Creio que no Nirvanadharma não entram todos os Budas" 131.

Sim, no caminho de Arya já não és um Srotapatti, és um Bodhisattva 132. Atravessaste o rio. É certo que tens direito à veste do Dharmakaya; mas um Samhbogakaya é maior do que um Nirvani, e maior ainda é um Nirmanakaya - o Buda da Compaixão 133.

Inclina agora a tua fronte e escuta bem, ó Bodhisattva - a compaixão fala e diz:

“Pode haver felicidade quando tudo quanto vive tem de sofrer? Quererás salvar-te ouvindo todo o mundo chorar?”

Agora ouviste o que se disse:

Chegarás ao sétimo degrau e atravessarás a porta do conhecimento final, mas apenas para tomares a dor por esposa - se queres ser Tathagata, seguir os passos do teu predecessor, conservar-te altruísta até ao fim sem fim.

Estás iluminado - escolhe o teu caminho.

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Olha a luz suave que inunda o céu oriental. Céu e terra unem-se em gestos de adoração. E dos poderes quadruplamente manifestados sobe um cântico de amor, tanto do fogo que brilha como da água que corre, da terra perfumada e do vento que passa.
Escuta!... do grande e insondável vórtice daquela luz dourada em que o Vencedor se banha, toda a voz sem palavras da natureza se ergue para em mil tons proclamar:
Sa-vos, ó homens de Myalba. 134.
Um peregrino regressou da “outra margem” 
Nasceu um novo Arhan. 135.
Paz a todos os seres. 136.

FIM


sábado, 15 de fevereiro de 2020

Jesus Cristo segundo São João - Capítulo 09

JOÃO 9


Cura do cego de nascença (Mt 9,27-31; 20,29-34; Mc 8,22-26; 10,46-52; Lc 18,35-43) - 1Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. 2Os seus discípulos perguntaram-lhe, então: «Rabi, quem foi que pecou para este homem ter nascido cego? Ele, ou os seus pais?» 3Jesus respondeu: «Nem pecou ele, nem os seus pais, mas isto aconteceu para nele se manifestarem as obras de Deus. 4Temos de realizar as obras daquele que me enviou enquanto é dia. Vem aí a noite, em que ninguém pode actuar. 5Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.»

6Dito isto, cuspiu no chão, fez lama com a saliva, ungiu-lhe os olhos com a lama 7e disse-lhe: «Vai, lava-te na piscina de Siloé» - que quer dizer Enviado. Ele foi, lavou-se e regressou a ver. 8Então, os vizinhos e os que costumavam vê-lo antes a mendigar perguntavam: «Não é este o que estava por aí sentado a pedir esmola?» 9Uns diziam: «É ele mesmo!» Outros afirmavam: «De modo nenhum. É outro parecido com ele.» Ele, porém, respondia: «Sou eu mesmo!»

10Então, perguntaram-lhe: «Como foi que os teus olhos se abriram?» 11Ele respondeu: «Esse homem, que se chama Jesus, fez lama, ungiu-me os olhos e disse-me: ‘Vai à piscina de Siloé e lava-te.’ Então eu fui, lavei-me e comecei a ver!» 12Perguntaram-lhe: «Onde está Ele?» Respondeu: «Não sei.»

13Levaram aos fariseus o que fora cego. 14O dia em que Jesus tinha feito lama e lhe abrira os olhos era sábado. 15Os fariseus perguntaram-lhe, de novo, como tinha começado a ver. Ele respondeu-lhes: «Pôs-me lama nos olhos, lavei-me e fiquei a ver.» 16Diziam então alguns dos fariseus: «Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado.» Outros, porém, replicavam: «Como pode um homem pecador realizar semelhantes sinais miraculosos?» Havia, pois, divisão entre eles. 17Perguntaram, então, novamente ao cego: «E tu que dizes dele, por te ter aberto os olhos?» Ele respondeu: «É um profeta!»

18Ora os judeus não acreditaram que aquele homem tivesse sido cego e agora visse, até que chamaram os pais dele. 19E perguntaram-lhes: «É este o vosso filho, que vós dizeis ter nascido cego? Então como é que agora vê?» 20Os pais responderam: «Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego; 21mas não sabemos como é que agora vê, nem quem foi que o pôs a ver. Perguntai-lhe a ele. Já tem idade para falar de si.»

22Os pais responderam assim por terem receio dos judeus, pois estes já tinham combinado expulsar da sinagoga quem confessasse que Jesus era o Messias. 23Por isso é que os pais disseram: ‘Já tem idade, perguntai-lhe a ele’.

24Chamaram, então, novamente o que fora cego, e disseram-lhe: «Dá glória a Deus! Quanto a nós, o que sabemos é que esse homem é um pecador!» 25Ele, porém, respondeu: «Se é um pecador, não sei. Só sei uma coisa: que eu era cego e agora vejo.» 26Eles insistiram: «O que é que Ele te fez? Como é que te pôs a ver?» 27Respondeu-lhes: «Eu já vo-lo disse, e não me destes ouvidos. Porque desejais ouvi-lo outra vez? Será que também quereis fazer-vos seus discípulos?» 28Então, injuriaram-no dizendo-lhe: «Discípulo dele és tu! Nós somos discípulos de Moisés! 29Sabemos que Deus falou a Moisés; mas, quanto a esse, não sabemos donde é!»

Replicou-lhes o homem: 30«Ora isso é que é de espantar: que vós não saibais donde Ele é, e me tenha dado a vista! 31Sabemos que Deus não atende os pecadores, mas se alguém honrar a Deus e cumprir a sua vontade, Ele o atende. 32Jamais se ouviu dizer que alguém tenha dado a vista a um cego de nascença. 33Se este não viesse de Deus, não teria podido fazer nada.» 34Responderam-lhe: «Tu nasceste coberto de pecados e dás-nos lições?» E puseram-no fora.

35Jesus ouviu dizer que o tinham expulsado e, quando o encontrou, disse-lhe: «Tu crês no Filho do Homem?» 36Ele respondeu: «E quem é, Senhor, para eu crer nele?» 37Disse-lhe Jesus: «Já o viste. É aquele que está a falar contigo.» 38Então, exclamou: «Eu creio, Senhor!» E prostrou-se diante dele.

39Jesus declarou: «Eu vim a este mundo para proceder a um juízo: de modo que os que não vêem vejam, e os que vêem fiquem cegos.»

40Alguns fariseus que estavam com Ele ouviram isto e perguntaram-lhe: «Porventura nós também somos cegos?» 41Jesus respondeu-lhes: «Se fôsseis cegos, não estaríeis em pecado; mas, como dizeis que vedes, o vosso pecado permanece.»



Continua...

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Corpus Hermeticum XIV

CORPUS HERMETICUM
De Hermes Trismegisto


XIV - DE DEUS CRIADOR (HERMES TRISMEGISTOS A ASCLÉPIOS)

1 Como meu filho Tat, na tua ausência, quis ser instruído acerca da natureza do universo e como não me permitiu postergar esta instrução, como é natural, pois é meu filho a um neófito no conhecimento das coisas particulares, fui forçado a tratá-las mais longamente, a fim de que a doutrina lhe fosse mais fácil de seguir. Mas para ti, quis, do que foi dito, escolher a enviar sob forma de epístola os assuntos mais importantes, exprimindo-os de maneira mais secreta tendo em vista tua idade mais avançada e a ciência que adquiriste da natureza das coisas.
2 Se as coisas que aparecem aos sentidos vieram a ser e vêm a ser, e se as coisas vindas a ser, vêm a ser não por elas mesmas mas por um outro e se muitas coisas vieram a ser, ou melhor, se vêm a ser as coisas que aparecem aos sentidos e as coisas diferentes e dissemelhantes e se as coisas vindas a ser, vêm a ser por um outro, existe alguém que criou as coisas e este alguém não veio a ser, se se deseja que seja anterior às coisas vindas a ser. Pois as coisas vindas a ser, como eu o declaro, vem a ser por uma outra: ora nada pode existir antes do conjunto das coisas que vieram a ser, senão o único que não veio a ser.
3 Este é o mais possante e único, e é o único realmente sábio nas coisas, pois nada há que lhe seja anterior: pois é o Primeiro na ordem do número e na ordem da grandeza e pela diferença que existe entre ele e os seres criados pela continuidade de sua criação. Por outra parte, os seres criados são visíveis, mas ele é invisível: é justamente por isto que cria, para tornar-se visível. Cria todo o tempo: conseqüentemente é visível.
4 Eis como é necessário pensar, e logo, admirar, e isto posto, considerar-se bem- aventurado pois conheceu-se o Pai. O que há de mais doce que um verdadeiro pai? Que é ele e como conhecê-lo? É acertado atribuir-lhe, e somente, o nome de Deus, ou aquele de Criador, ou de Pai, ou ainda os três? Deus devido à sua potência, Criador pela sua atividade, Pai pelo Bem? Pois é potência, sendo diferente das coisas vindas a ser e é atividade pela qual as coisas vêm a ser.
Detendo toda vaga de palavras e os discursos vãos, é necessário apegar-se a esses dois conceitos: o que é criado e o que criou, pois entre esses dois nada existe, nem mesmo um terceiro termo. 5 Em Tudo o que concebes, em tudo que ouves dizer, lembra-te desses dois e convence-te que tudo se resume neles, sem dúvida, nem acerca das coisas do alto, nem das coisas de baixo, nem das coisas divinas, nem das coisas mutáveis, ou das coisas das profundezas; pois tudo que existe se resume em duas coisas: o que foi criado e o que criou, impossível é separar um do outro; pois o que cria não pode ser separado do que é criado, cada um dos dois está submetido a isto e nada mais, é por esta razão que nenhum pode ser separado do outro e mais ainda de. si mesmo.
6 Se o criador nada mais é que a função criadora única, simples, incomposta, esta função deve necessariamente criar a si mesma, pois o criar daquilo que é criado é produção do ser e tudo o que é produzido não pode existir como produzido por si mesmo, é produzido necessariamente por um outro, sem o criador portanto, o que vem a ser, nem vem a ser nem existe. Uma vez separado do outro, cada um desses termos perdeu sua própria natureza, privado que foi de seu complemento. Se se reconhece então que a realidade se resume em dois termos, o que foi criado e o que criou, esses dois formam uma unidade em virtude de sua unidade, um à frente o outro seguindo: o que marcha à frente é Deus criador, o que segue, e coisa criada; qualquer que seja.
7 E não te ressabies pela diversidade das coisas criadas, no medo de degradar a Deus e acarretar-lhe uma falta de glória: para ele é uma glória criar todos os seres e é isto que é conforme ao corpo de Deus, o fato de criar. Mas o criador nada possui que seja feio ou mau: pois

esses são acidentes inseparavelmente ligados à geração como a oxidação ao bronze ou a banha ao corpo. Ora não foi o operador que produziu a oxidação, nem os pais que fizeram a banha, nem Deus que criou o mal. Mas é a duração das coisas criadas que produz esta forma de pestilência maléfica e eis a razão de ter feito, Deus, a transformação como uma purificação das coisas criadas.
8 Bem, se ao pintor é permitido fazer o céu e os deuses, a terra e o mar, os humanos e todos os animais e os objetos inanimados, Deus não poderia criar tudo aquilo? Que loucura, como és falto de conhecimento relativamente a Deus! Aqueles que falam desta maneira fazem a mais estranha das experiências: ao mesmo tempo que pretendem afirmar a sua piedade relativamente a Deus e dar-lhe graças, recusando atribuir-lhe a criação de todos os seres, não somente ignoram Deus, mas, além desta ignorância, cometem a mais negra das impiedades atribuindo-lhe como qualidades o desdém ou a impotência. Pois se Deus não é o criador de todos os seres, é porque ou desdenha criá-los ou não o pode; ora é ímpio pensar nisto.
9 Pois Deus possui apenas uma qualidade, o Bem, e o ser bom não é nem desdenhoso nem impotente. Sim, eis o que é Deus, o Bem, e a potência de tudo criar, e todo o criado vem a ser por Deus, isto é, por aquele que é bom e tem a potência de criar tudo.
Agora, se queres saber como Deus criou e como as coisas criadas vieram a ser, tu o podes: eis uma comparação bela e verossímil.
10 Veja o trabalhador lançando a semente à terra, aqui o frumento, ali a cevada, mais adiante alguma outra espécie de semente. Veja-o ainda plantado aqui uma parreira, ali uma macieira, e todas as outras espécies de árvores. É desta forma que Deus semeia no céu a imortalidade, na terra a mudança, no Todo a vida e o movimento. Esses princípios não são numerosos, mas em pequeno número e fáceis de contar: pois são quatro ao todo, mais o próprio Deus e a natureza criada, que constituem tudo quanto existe.

Continua...