domingo, 10 de maio de 2020

Corpus Hermeticum - Discurso da Iniciação

CORPUS HERMETICUM
De Hermes Trismegisto


DISCURSO DA INICIAÇÃO OU ASCLEPIOS LIVRO SAGRADO DEDICADO A ASCLÉPIOS

1 "É Deus, sim, Deus, ó Asclépios, que te guiou até nós para que tomasses parte num colóquio divino, tanto que, e bem dizer, de todos que tivemos até agora, ou dos que nos inspiraram a potência do alto, parecerá pela sua escrupulosa piedade, o mais divino. Se te mostras capaz de compreendê-lo, teu espírito será cumulado de todos os bens, se é que existem muitos bens e não apenas um que os contenha a todos. Pois discerne-se entre um e outro termo uma relação recíproca - tudo depende de um único e esse Um é o Todo: estão tão estreitamente ligados que não se saberia separar um do outro. Mas isto, meu próprio discurso vai te ensinar se o escutas com diligente atenção. Todavia, ó Asclépios, o percurso não é longo, vá chamar Tat, para que seja um dos nossos.
Assim que entrou, Asclépios propôs a admissão de Hammon. - Não somos tão ciosos, disse Trismegistos, a ponto de afastar Hammon de nosso grupo; pois eu me recordo, muitos de meus escritos lhe foram dedicados, bem como a Tat, meu filho amantíssimo e caríssimo, muitos de meus tratados de física e uma pluralidade de obras exotéricas.
É teu nome, portanto, que eu quero colocar na abertura desse tratado. Não chama mais ninguém além de Hammon: um discurso tão religioso acerca de um tão grande objeto não deve ser profanado pela presença de um numeroso auditório. É uma impiedade divulgar à massa um ensino repleto da completa majestade divina.
Quando Hammon entrou no santuário e o fervor dos quatro homens e a presença de Deus preencheram esse santo lugar, assim que, no silêncio conveniente, todos os espíritos e todos os corações estavam presos com veneração aos lábios de Hermes, o divino Cupido começou nestes termos:
2 "Ó Asclépios; toda alma humana é imortal, mas não são todas do mesmo modo: diferem segundo o modo e o tempo.
- Não é, então, verdadeiro, ó Trismegistos, que todas as almas sejam da mesma qualidade?
- Deixaste rapidamente de seguir, ó Asclépios, a verdadeira seqüência do raciocínio! Não disse eu que tudo é um e que o Um é o Todo, porque as coisas existiram no Criador antes que as criasse? E não foi sem razão que o chamaram Todo, e ele de quem as coisas são membros. Tenha cuidado de lembrar-te, ao longo de todo esse discurso, daquele que sozinho é tudo ou que é o criador de tudo.
Tudo desce do céu sobre a terra, na água e no ar. Do fogo, somente o que tende de baixo para o alto é vivificante; o que tende para baixo é subordinado ao que sobe. Mas tudo o que desce do alto é gerador; tudo o que se exala para o alto é nutridor. A terra que é a única que permanece em repouso em seu lugar, é o receptáculo das coisas, recebe em si todos os gêneros e, de novo, faz com que apareçam. Aí está o todo que, como te recordas, contém tudo e é tudo. A alma e a matéria, são abraçadas pela natureza e são postas em movimento por ela, com uma tal diversidade no aspecto multiforme de tudo o que toma forma que aí se reconhece um número infinito de espécies que, embora distintas pela diferença de suas qualidades, são todavia unidas de uma tal maneira que o Todo parece um e que do Um tudo parece ter saído.
3 Ora, os elementos graças aos quais a matéria inteira tomou forma, são em número de quatro: fogo, água, terra, ar; um mundo, uma alma, um deus.
Agora, atem-te inteiramente ao que vou dizer, com toda a força da tua inteligência, toda a fineza de teu espírito. Pois a doutrina da divindade, que exige para ser conhecida uma aplicação do intelecto que só pode provir de Deus, parece bastante com um rio torrencial que se precipita do alto com uma violenta impetuosidade, que exige a atenção, não somente daquele que escuta, mas também daquele que fala.
O céu, deus perceptível aos sentidos, governa os corpos, cujo crescimento e declínio estão a cargo do sol e da lua. O céu por sua vez, a alma, e todos os seres do mundo, são regidos por aquele que os criou, Deus. Ora, desses corpos celestes, todos igualmente regidos por Deus, expandem-se contínuos eflúvios através do mundo e através da alma de todos os gêneros e dos indivíduos, de um lado e outro da natureza. Todavia a matéria foi preparada por Deus para ser o receptáculo das formas sensíveis de toda aparência e a natureza imprimindo as formas sensíveis na matéria por meio dos quatro elementos, prolonga até ao céu e série de seres para que agradem aos olhares divinos.
4 Ora, todos os seres dependentes dos corpos do alto, distribuem-se em formas sensíveis da forma que vou dizer. Os indivíduos de cada gênero seguem a forma de seu gênero, de forma que o gênero seja o todo, um indivíduo uma parte do gênero.
Desta forma, o gênero dos deuses produzirá os indivíduos deuses.
O gênero dos daimons e similarmente os dos humanos, bem como o dos pássaros e de todos os seres contidos pelo mundo, engendram indivíduos que lhe são semelhantes. Existe um outro gênero de viventes, sem alma, para dizer a verdade, mas não sem faculdades sensitivas, de modo que os bons tratos os fazem crescer e os maus decrescer e perecer; entendo por isso todos os seres que tomam vida na terra pelo bom estado das raízes e do caule, desse gênero de seres, os indivíduos estão dispersos por toda a terra. Quanto ao céu, está pleno de Deus. Os gêneros de seres que acabo de mencionar ocupam todo o espaço até os lugares próprios dos gêneros dos quais os indivíduos, todos sem exceção, são imortais. Pois o indivíduo é uma parte do gênero - o ser humano é parte da humanidade - e necessariamente segue a qualidade de seu gênero. E, se bem que todos os gêneros sejam imortais, os indivíduos não são todos imortais.
No caso da divindade, o gênero e os indivíduos são imortais; nas outras raças de viventes, o gênero é imortal e os indivíduos mortais, mas nem por isso cessa a eternidade do gênero que desenvolve sua duração pela fecundidade reprodutora. Destarte, os indivíduos são mortais, os gêneros não o são: o ser humano é mortal, a humanidade imortal.
5 Todavia os indivíduos de cada gênero comunicam-se com todos os outros gêneros - tenham sido, estes indivíduos, produzidos anteriormente, tenham nascido daqueles que foram produzidos. Portanto, todos os seres que são produzidos ou pelos deuses, ou pelos daimons, ou pelos homens, são indivíduos inteiramente semelhantes e seus gêneros respectivos: pois os corpos não podem receber suas formas sem a vontade divina, os indivíduos sua figura sem o concurso dos daimons e os seres inanimados não podem ser plantados e criados sem a mão do homem. Aqueles que entre os daimons saem de seu gênero para atingir um outro gênero são levados a entrar em contato com um indivíduo do gênero divino, são tidos, graças a essa vizinhança e a esse intercâmbio, por semelhantes aos deuses.
Por outro lado, aqueles daimons que perseveram na qualidade de seu gênero são chamados daimons amigos dos humanos. O mesmo sucede relativamente aos humanos: esses cobrem na verdade um campo maior. Pois os indivíduos humanos são diversos e de mais de um caráter: provenientes do alto, do lugar onde tiveram comércio com o gênero de que se falou, contraíram muitas ligações com todos os outros gêneros e com o maior número deles por necessidade. Este ser humano se aproxima dos deuses que graças ao espírito que o aparenta aos deuses, uniu-se a eles por uma religião inspirada do céu; este outro se aproxima dos daimons por ter se unido a eles; aqueles permanecem simplesmente humanos, contentes que estão com a posição intermediária de seu gênero; e todos os seres do gênero humano assemelhar-se-ão ao gênero do qual tenham freqüentado os indivíduos. 6 Assim é uma grande maravilha o ser humano, um vivente digno de adoração e honra. Pois passa a possuir a natureza de um deus como se fosse um deus, possui familiaridade com o gênero dos daimons sabendo que possuem a mesma origem; despreza esta parte de sua natureza que é apenas humana pois depositou sua esperança na divindade da outra parte. Oh! de que mistura privilegiada é feita a natureza humana! Unido aos deuses - pelo que possui de divino e que o aparenta a eles; a parte de seu ser que o faz terrestre despreza-a em si mesmo; todos os outros viventes aos quais se sabe ligado em virtude do plano celeste, prende-se-lhes por um laço de amor e eleva seus olhares para o céu. Tal é então a sua posição privilegiada de intermediário que ama os seres que lhe são inferiores, como é amado por aqueles que o dominam. Cuida da terra, mistura-se aos elementos pela velocidade de seus pensamentos, pela ponte do espírito atira-se no abismo do mar. Tudo lhe é acessível; o céu não lhe parece muito alto, pois mede-o como próximo graças à sua engenhosidade. O olhar que seu espírito dirige, nenhuma miragem ofusca; a terra nunca é tão compacta que consiga impedir seu trabalho; a imensidão das profundidades marinhas não obscurecem a sua visão que mergulha. É ao mesmo tempo as coisas e está em toda parte.
Entre todos esses gêneros de seres, aqueles que são providos de uma alma tem raízes que os atingem do alto para baixo; por outro lado os seres desprovidos de alma possuem raízes que vêm de baixo para o alto. Certos seres se alimentam de alimentos de duas espécies, outros, de alimentos de uma só espécie. Existem dois tipos de alimentos, os da alma e os do corpo, as duas partes componentes do vivente. A alma é alimentada pelo movimento sempre mantido do céu. Os corpos devem seu crescimento à água e à terra, alimentos do mundo inferior, o sopro que preenche o universo, espalha-se em todos os seres animados e lhes dá vida, enquanto que o ser humano, além do entendimento, recebe o intelecto, quinta parte, única proveniente do éter, dada ao ser humano como um dom. Mas de todos os seres que possuem vida, somente o ser humano possui intelecto, e este o eleva, exalta, de forma que possa atingir o conhecimento do plano divino. Por outra parte, como fui levado a falar do intelecto, voltarei a falar acerca de sua doutrina: pois é uma doutrina muito alta e santa, não menos alta que aquela que trata da própria divindade. Mas terminemos nosso assunto.
7 Falei desde o início desta união com os deuses, da qual são seres humanos os únicos a fruir pelo favor dos mesmos, referi-me a esses dentre os humanos que obtiveram a felicidade suprema de adquirir esta faculdade divina da intelecção, este intelecto mais divino que existe somente em Deus e no entendimento humano. - Então, ó Trismegistos, o intelecto não é de mesma qualidade em todos os homens?
- Não, ó Asclépios, nem todos atingiram o verdadeiro conhecimento, mas, em seu cego impulso, sem nada ter visto da verdadeira natureza das coisas, deixam-se arrastar por uma ilusão que cria a malícia nas almas e faz cair o melhor dos viventes até à natureza da besta e à condição dos brutos. Mas o que se refere ao intelecto e sujeitos conexos, será tratado completamente quando vos falarei do sopro.
Unico entre os viventes, o ser humano é duplo, e uma das partes que o compõem é simples, aquela que os Gregos chamam de essencial, e nós, formada à semelhança de Deus'. A outra parte é quádrupla, aquela que os Gregos chamam `material' e nós, `terrestre'. É dela que foi feito nosso corpo, que serve de envoltório e esta parte do ser humano que nós acabamos de dizer que é divina, porque neste abrigo, a divindade do espírito puro, repousa apenas com eles, como que dividida, atrás do muro do corpo.
- Por que foi necessário, ó Trismegistos, que o ser humano fosse estabelecido na matéria em lugar de viver na felicidade suprema na região onde Deus habita?
- Eis uma boa questão, Asclépios, e peço a Deus que me dê os meios de respondê-la. Pois se tudo depende de sua vontade, essas discussões sobre o Todo supremo, esse Todo que faz o objeto de nossa pesquisa atual, sobretudo.
8 Escuta então, ó Asclépios. Quando o Senhor e o Criador das coisas, que chamamos com justiça Deus, faz, segundo após ele, o deus visível e sensível, esse segundo deus, se o digo sensível, não é que queira dizer que seja ele mesmo dotado de sensação (se ele o é ou não, o discutiremos em um outro momento), mas porque cai sob o sentido visual - quando Deus então produziu este ser, o primeiro que tirou de si mesmo, mas o segundo depois dele, e que este lhe pareceu belo, pois estava cumulado da bondade de todos seres, amou-o como fruto de sua divindade. Então em Deus todo-poderoso e bom, quis que existisse um outro ser que pudesse contemplar aquilo que havia tirado de si mesmo e prontamente criou o ser humano, cuja razão e cuidado com as coisas devem ser à imitação dos de Deus. Pois a vontade, em Deus, é o cumprimento mesmo do ato, pois querer e fazer são coisas realizadas por ele no mesmo instante. Ora, após haver criado o ser humano essencial, como visse que esse ser humano não poderia cuidar das coisas se não o cobrisse com um envoltório material, deu-lhe um corpo por domicílio e prescreveu que todos os seres humanos fossem tais, compondo de uma e outra natureza, uma fusão e uma mistura únicas na proporção conveniente. Foi desta forma - que conformou o ser humano, da natureza do espírito e do corpo, isto é do eterno e do mortal, para que o vivente formado dessa forma pudesse satisfazer à sua dupla origem, admirar e adorar as coisas celestes, tomar conta das coisas terrestres e governá-las.
Agora, por coisas mortais não entendo a terra e a água, esses dois elementos que, entre os quatro, a natureza colocou à disposição do ser humano, mas tudo o que o ser humano produz, seja nesses elementos, seja tirando desses elementos, por exemplo a cultura do solo, as pastagens, as construções, os portos, a navegação, as relações sociais, as trocas mútuas, as obras que constituem o liame mais sólido de ser humano a ser humano e entre o ser humano e esta parte do mundo que é feita de terra a água. Esta parte terrestre do mundo é mantida pelo conhecimento a prática das artes e das ciências, sem as quais Deus não quis que o mundo pudesse passar a ser perfeito. Pois o que Deus decretou deve ser necessário e cumprido, quer uma coisa e ela está feita e não se pode acredïtar que Deus volte atrás alguma vez acerca do que decretou um dia, pois sabia muito antes que esta coisa se produziria e que o agradaria.
9 Mas percebo bem, ó Asclépios, com qual impaciente desejo de alma queres compreender como o ser humano pode fazer, do céu e dos seres que aí se encontram, o objeto de seu amor e de seus cuidados. Escuta, ó Asclépios.
Amar o deus do céu e todos os seres celestes é unicamente prestar-lhes uma contínua reverência. Ora, de todos os viventes, divinos e mortais, nenhum outro a prestou, senão o homem. Esses testemunhos humanos de admiração, de adoração, de louvor, de reverência, fazem a delícia do céu e dos seres celestes. E é justo que a divindade suprema tenha enviado cá para baixo o coro das Musas entre os homens para que o mundo terrestre não pareça muito selvagem, privado da doçura da música, mas que contrariamente, pelos seus cantos inspirados pelas Musas, os homens possam oferecer seus louvores àquele que sozinho é o Todo e o pai de todos, e que desta forma, aos louvores celestes responda sempre, na terra também, uma suave harmonia. Alguns humanos, em muito pequeno número, dotados de uma alma pura, receberam como parte a augusta função de elevar seus olhos para o céu. Mas todos aqueles que, em virtude da mistura de sua dupla natureza, deixaram-se restar, pelo peso do corpo, a um nível inferior de conhecimento, destinam-se ao cuidado dos elementos ou, ainda, dos inferiores. O ser humano é portanto um vivente, e não digo que é inferior, pelo fato que seja em parte mortal: ao contrário, pode ser que tenha sido enriquecido pela mortalidade por ter, assim composto, mais habilidade e eficácia em vista de um propósito determinado. Pois não teria podido cumprir sua dupla função se não fosse composto das duas substâncias, é preciso ser de uma e de outra, para ser capaz ao mesmo tempo de cuidar das coisas terrestres e amar a divindade.
10 Quanto ao assunto que vou tratar agora, ó Asclépios, desejo que mantenhas com uma atenção penetrante todo o ardor de teu espírito. Com efeito, se a maior parte não acredita nessa doutrina, não deve ser, entretanto, recebida como menos sã e verdadeira pelas almas mais santas. Começo então.
Deus, mestre da eternidade, é o primeiro; o mundo o segundo; o ser humano é o terceiro. Deus é o criador do mundo e de todos os seres que aí se encontram, governando ao mesmo tempo as coisas, em conjunção com o ser humano que governa também o mundo formado por Deus. Se o ser humano assume esse ofício em tudo que comporta, entendo que esse governo é sua função própria, faz de forma que seja para o mundo, aquilo que o mundo é para si: um ornamento, se bem que, por essa divina estrutura do homem, concorda-se em chamá-lo um mundo, o grego o diz mais justamente uma ordem (kosmos). O ser humano se conhece, conhece também o mundo, este conhecimento faz com que ele lembre o que convém a seu papel e reconheça quais coisas servem para seu uso, e serviço de que e de quem deve se colocar, oferecendo a Deus seus louvores e suas ações de graça as mais vivas, reverenciando a imagem de Deus sem esquecer que é também a segunda imagem: pois Deus possui duas imagens, o mundo e o ser humano. De onde resulta que o ser humano constitui apenas uma única liga, por aquela parte pela qual, sendo feito, com elementos superiores, da alma e do intelecto, do espírito e da razão, é divino, parece possuir os meios de subir até aos céus, enquanto que pela parte material, composta de fogo e de terra, de água e de ar, é mortal e permanece preso à terra, com medo que possa deixá-la vazia e abandonar as coisas confiadas à sua guarda. É desta forma que a natureza humana, em parte divina, foi criada também em parte mortal pois foi estabelecida em um corpo.

Continua...

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